sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Precisão do chute está relacionada ao efeito do estresse


Retirado do site Universidade do Futebol


Presença de goleiro e informação prévia do lado do chute são fatores determinantes para degradação da pontaria e reprodutibilidade do movimento
O Laboratório de Fisiologia do Comportamento do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, em São Paulo, estuda processos de controle motor no esporte, que envolvem aspectos como percepção visual, treinamento, estresse e fadiga. A avaliação do professor Ronald Ranvaud é que os cobradores, em geral, não se prepararam para esse momento decisivo, sem o traçar de um planejamento estratégico prévio.
“Sem ter esse preparo, a situação do cobrador é uma situação, em geral, de estresse, portanto, de confusão mental. Leva, inclusive, a imaginar que vai errar”, justificou, em entrevista ao programa SporTV Repórter, cuja edição retrasada abordou a “A Ciência e a Alma do Pênalti”.
Um dos alunos de Ranvaud, Nelson Myamoto, estudou em sua tese de mestrado a influência do estresse em cobradores de pênalti. Os voluntários faziam o teste através de um computador, em dois ambientes diferentes: na sala de aula, em que o experimento era projetado num telão e os alunos torciam contra e a favor, e no laboratório, em uma cabine acústica, sem barulho e interferência externa.
“No experimento em laboratório, os cobradores atingiam praticamente 100% de aproveitamento. Na situação de sala de aula, no meu experimento especificamente, em uma análise mais global, eles atingiam 80%. Se em uma situação de laboratório nós tivemos a influência do estresse no desempenho motor dos nossos voluntários, imagine essa situação em um esporte como o futebol, que é a paixão nacional”, questionou o pesquisador.

A partir de um mapeamento do gol para chegar à “batida perfeita de pênalti”, Ranvaud dividiu a meta em quatro colunas iguais, sendo a metade que fica no meio do gol ocupada pelo defensor principal.
“Como o Pelé dizia: 'não chuta ali'. Chuta um quarto para fora à direita ou à esquerda. Além disso, não chuta rasteiro. Chuta nos dois terços superiores do gol. A uma velocidade de 80, 85 km por hora, não há como o goleiro defender. Eventualmente um goleiro que, se tiver adiantado bastante, um goleiro muito alto, pode pegar naquele cantinho mais próximo dele, embaixo, talvez. Mas é muito, muito, muito raro”, garantiu o pesquisador.
Pênalti ser loteria? Ranvaud discorda e entende que a finalização será jogada à sorte se o atleta não treinar. Agora, se a mente do batedor estiver 100% comprometida com o fato de executar aquele gesto já ensaiado, no qual ele tem confiança, o nível de estresse seria bem menor e o índice de conversão subiria muito.
Diante de um gramado bem cuidado, sem recordar o fracasso da equipe principal na Copa América e, principalmente, bem treinada, a seleção brasileira sub-20 superou a Espanha na semifinal do Mundial da categoria justamente nas cobranças de penalidade máxima, após igualdade no tempo normal e na prorrogação.
“Em nenhum momento eu pensei no que aconteceu na Copa América, pois isso acontece raramente, uma vez a cada dez anos. Foi uma eventualidade, o Brasil nunca foi de perder tantos pênaltis. Pensei nos nossos treinamentos, em como trabalhamos bem. Quando fomos para os pênaltis eu estava confiante, tranquilo. Tentei esperar ao máximo, mas tinha que escolher um canto. Sei do jeito que os espanhóis batiam, estudei antes do jogo. Ainda bem que acertei dois lados. Isso é competência, não é sorte”, afirmou o goleiro Gabriel, que defendeu dois chutes.
“Na Copa América a seleção jogou em um pasto, então também acho que faz diferença. Embora a gente tenha treinado muitas penalidades”, completou o treinador Ney Franco. Na final, diante de Portugal, as emoções não chegaram ao mesmo patamar – mas a vitória por 3 a 2 só ocorreu no tempo extra.
  
Confira estudo comandado por Ronald Ranvaud e Nelson Miyamoto, apresentado no XVI Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte e III Congresso Internacional de Ciências do Esporte:
Durante a cobrança do pênalti no futebol o goleiro deve ficar na linha do gol até que a bola seja tocada pelo cobrador (FIFA, 2002). No período em que o cobrador se desloca em direção à bola, as informações visuais fornecidas pelo goleiro podem ser utilizadas pelo cobrador para definir, modular ou alterar seu plano motor. O cobrador, portanto, tem um certo tempo disponível para decidir detalhes essenciais do que fazer, em função da ação do goleiro, mas o tempo à sua disposição diminui com a aproximação à bola.
Um protocolo experimental desenvolvido em laboratório, que simula aspectos importantes de uma cobrança de pênalti, analisou a dinâmica da determinação da lateralidade da cobrança em função da lateralidade de movimentos precoces do goleiro (MORYA, 2003a). Foi identificado, em particular, o “Ponto-de-Não-Retorno” (PNR), ou seja o momento além do qual não é mais possível para o cobrador mudar a lateralidade do chute, mesmo que, naquela altura, o goleiro indique claramente que escolheu o canto onde irá a bola. O trabalho mostrou serem necessários pelo menos 240 ms para reagir à indicação do goleiro (MORYA et al., 2001). Isto significaria que o cobrador de um pênalti, percebendo a intenção do goleiro depois de 240 ms do contato com a bola, seguramente tem menos de 50% de chance de reagir adequadamente.
Surgiram indícios, também, que decidir alterar a lateralidade do chute em momentos anteriores, até >450 ms antes do contato com a bola, pode afetar a precisão do chute. Estudos em campo encontraram que a velocidade média da bola para pênaltis chutados na Copa do Mundo de 2002 foi por volta de 115 km/h (BIGATÃO et al., 2003; MORYA et al., 2003b). Isto significa que a bola leva 340 ms para chegar ao gol (op cit). Analisando tempos de reação e considerando a biomecânica da ação de defesa, tempos próximos a 350 ms correspondem a valores viáveis para que o goleiro tenha alguma chance de interceptar a bola, se o chute não for excelente. LEES e NOLAN, 2001 mediram o tempo que um goleiro demora pra chegar nos diferentes pontos do gol e qual a velocidade que a bola deve ter para que o goleiro não tenha tempo de chegar nela. Outro estudo (MORYA et. al., 2003b) registrou o local das cobranças e identificou as regiões em que raramente tem defesas. Assim, pode-se dizer que existe o pênalti perfeito.
Pode-se considerar que o pênalti perfeito é aquele chutado dentro do gol com velocidade suficiente para o goleiro não poder chegar até a bola. Quanto mais perto do poste, menor è a exigência quanto à velocidade da bola. Qualquer outra estratégia apresenta riscos e não garante que o cobrador faça o gol. Porém, apesar da evidência de estudos científicos indicando a importância do pênalti em um jogo de futebol e propondo várias estratégias para abordar o problema, muitos técnicos, atletas e dirigentes atribuem o desempenho na cobrança de um pênaltimuito mais à sorte ou ao azar, do que a questões técnicas ou fisiológicas. Poucas são as equipes que incluem rotinas de treino sério da cobrança do pênalti (BONIZZONI, 1988; MILLER, 1998), o que provavelmente leva ao baixo índice de conversão por parte dos cobradores.
Entre um terço e um quarto dos pênaltis batidos pelos melhores profissionais em jogos oficiais não são convertidos em gol (MORYA et. al. 2003b; MILLER, 1998). Considerando a velocidade da bola, a habilidade no chute desses jogadores e o tempo necessário para que o goleiro atinja os cantos do gol (LEES E NOLAN, 2001), é surpreendente que o desempenho dos cobradores não seja bem melhor. O mau desempenho é muitas vezes atribuído ao estresse da situação. Uma opinião muito difundida é que treinar é inútil, ou até impossível, pois não há como reproduzir, em treinos, as condições de estresse da vida real.
O efeito do estresse durante um pênalti foi muito bem caracterizado por MIYAMOTO et. al., 2007. Através do mesmo protocolo utilizado por MORYA, 2003, porém na presença de dezenas de espectadores, o trabalho visou determinar o efeito do estresse induzido por espectadores sobre o desempenho motor. Os resultados (MIYAMOTO et. al. 2007) indicaram, como era esperado, que o “ponto de não retorno” recuou (de 250 para 290 ms antes do contato com a bola). Mas muito mais interessante e inesperado foi que, sob a situação de estresse, o desempenho saturou a 80%, ou seja, mesmo que o goleiro fornecesse pistas de sua ação com bastante antecedência, os voluntários eram incapazes de responder corretamente 100% das vezes. Eles colocavam a bola no mesmo lado do goleiro em porcentagem apreciável das tentativas. Estudos em campo (JORDET et. al. 2006; JORDET et. al. 2007a; JORDET et. al. 2007b) também demonstraram que o estresse está intimamente ligado com um pior desempenho durante as cobranças.
Atletas de elite, que através de questionários mostraram ficar estressados durante a cobrança de um pênalti foram os que tiveram baixo índice de conversão. Esses achados são muito significativos, pois revelam aspectos inéditos do efeito de estresse, e fornecem pistas importante para a elaboração de estratégias de treino para essa situação.
Como o estresse é fator determinante no desempenho de uma cobrança de pênalti e treinadores e atletas acreditam que treinar pênalti seria inútil por não ser possível reproduzir em treino o efeito do estresse presente em jogos oficiais, o objetivo desse trabalho foi criar um protocolo que reproduza durante o treino uma situação de estresse, e verificar seus efeitos no controle motor do chute de um atleta de elite.
Materiais e Métodos
Desenvolvemos um protocolo experimental para medir a precisão e a reprodutibilidade de chutes de um jogador profissional de futebol. Para isso utilizamos:
1) 2 retângulos de madeirite de 1,60 (altura) x 1,80 (largura) com espessura de 15mm. As dimensões foram escolhidas por cobrir a área dos 4 retângulos nos cantos superiores do gol (Figura 1 e 2.), em que as estatísticas registram raríssimas defesas de pênalti em jogos oficiais. Os retângulos de madeirite foram pendurado deixando um vão de 2 cm da trave e 2 cm do travessão, em ambos os lados do gol. Determinamos um alvo de diâmetro de 22 cm (tamanho aproximado da bola) no meio do madeirite. A tarefa do jogador era de tentar sempre atingir o alvo com a maior precisão possível, e com velocidade da bola acima de 22m/s (80 Km/h). Pintamos o maderite com cal, de forma que seria possível determinar facilmente qual foi o ponto atingido pela bola em cada chute.






2) Radar de pistola – medimos a velocidade da bola em tempo real com um radar de velocidade modelo SportsStalker.
3) Filmadora – filmamos todas as tentativas de forma a ter os registros visuais de cada chute, para análise posterior.
Um atleta da primeira divisão do Campeonato Paulista de futebol participou do protocolo experimental, que era composto de 3 etapas:
1. Na primeira etapa (controle), o atleta chutou a bola situada na marca do pênalti, visando atingir o alvo. Foram 20 chutes para o alvo à direita, e 20 para o alvo à esquerda.
2. Na segunda etapa o mesmo atleta chutou, ainda mirando o alvo, 5 vezes para cada lado, mas, agora na presença de um goleiro profissional que tentaria defender “o pênalti”, considerando que a tarefa de atingir o alvo seria uma possível estratégia de cobrança de pênalti.
3. Na terceira e última etapa, o atleta deveria, antes do chute, indicar para o goleiro o lado para o qual chutaria (5 vezes para cada lado), sempre mirando o alvo. Dessa forma o goleiro já saberia para que lado pular.
Escolhemos as condições de área específica do gol e velocidade pelas quais seriam muito difícil um goleiro conseguir defender um pênalti. Em todas as situações medimos a precisão de cada chute em cm, ou seja a distância (cm) entre o alvo e a posição em que a bola atingiu o madeirite em cada chute. Fizemos uma análise de modelo linear geral para a precisão dos chutes e teste chiquadrado para o desempenho (gol ou não), adotando p<0,05 como significativo.

Resultados e Discussão
Precisão média
A imprecisão dos chutes, avaliada pela média das distâncias entre o alvo e onde a bola realmente atingiu o madeirite, aumentou na presença do goleiro (Tabela 1). Sem goleiro a distância média entre o alvo e o ponto em que a bola cruzou o plano do gol foi significativamente menor (0,59 m) do que quando havia goleiro, seja que este último não soubesse (0,96 m; p=0,05) ou soubesse (1,15 m; p=0,0007) o lado do chute.






O aumento médio da distância entre onde o cobrador foi instruído chutar e onde ele chutou indica que houve uma degradação em sua pontaria. Essa degradação pode ser interpretada como efeito do estresse introduzido pela presença do goleiro, pior quando o goleiro sabia a direção em que sairia o chute. Importante lembrar que a presença do goleiro era perfeitamente irrelevante para a tarefa à qual o cobrador estava submetido, ou seja, a de tentar atingir o alvo em cada chute, com a bola viajando a mais de 22 m/s.
Mesmo assim a presença dos goleiros influenciou significativamente o comportamento e o desempenho motor do jogador. O aumento considerável do desvio padrão sugere que haja outro efeito do estresse induzido pela presença do goleiro, qual seja maior dificuldade na reprodutibilidade do movimento de cada chute pelo cobrador. Na figura 3, que mostra a posição de todos os chute nas 3 situações, percebemos uma maior dispersão nos chutes com goleiro.
Comparando as duas situações, com goleiro e sem, percebemos que a nuvem de pontos sem goleiro é mais concentrada, indicando que sem o goleiro o cobrador consegue reproduzir os movimentos sem muita variabilidade. O contrário ocorre na presença do goleiro, o cobrador não consegue reproduzir os movimentos que pretende executar.





Figura 3. Posição (cm) que a bola atingiu o gol dos chutes nas 3 situações. 


O retângulo preto representa o maderite e as duas bordas pretas reforçadas desse retângulo, acima e a direita, indicam a trave e o travessão. Assim todos os pontos acima e a direita do retângulo são chutes para fora. O círculo vermelho indica defesa do chute. Podemos observar que os chutes na presença do goleiro são muito mais dispersos do que sem goleiro.

Desempenho médio

Apenas 50% dos chutes corresponderiam a pênaltis convertidos, quando o goleiro sabia previamente o lado de chute, desempenho muito inferior aos 90% de gols quando não havia goleiro e 100% quando o goleiro não sabia o lado. O teste chi-quadrado apontou diferença significativa entre as situações com e sem goleiro (p=0,0002). Este é mais um indício de que o controle motor do cobrador deteriorou nas condições de estresse pela situação experimental.

Conclusão
Podemos interpretar a degradação da pontaria e da reprodutibilidade do movimento de chute do atleta como efeitos do estresse induzido (a) pela presença de um goleiro, e (b) pela informação prévia do lado do chute, mesmo que a presença do goleiro fosse, em principio, irrelevante na tarefa de fazer a bola atingir o alvo. Conseguimos criar um protocolo eficaz em estressar o jogador em situação parecida à cobrança de um pênalti em um treino. Assim, é possível reproduzir em treino níveis de estresse que alteram o desempenho de um atleta. Esse resultado abre a perspectiva de treinar pênaltis para melhorar o desempenho sob estresse, o que sem dúvidas se aplica à situação de jogo. Em laboratório outros resultados (NAVARRO et. al. 2008) indicaram que com treinamento adequado os efeitos do estresse são reversíveis. Esperamos que essas informações mudem a idéia de treinadores e atletas que resistem treinar pênalti, pois consideram que não haja como reproduzir, em treinos, as condições de estresse suficiente para alterar o desempenho motor do atleta.
Referencias bibliográficas:
BIGATÃO, H.; MORYA, E.; RANVAUD, R. An analysis of penalty kicks in the 2002 soccer world cup.Motriz, 9:S107, 2003.
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LEES, A.; NOLAN, L. Three dimensional kinematic analysis of the instep kick under speed and accuracy conditions. 4th World Congress of Soccer and Football, Sydney, Australia 22-26th February, 2001.
MILLER C. He always puts it to the right: a history of the penalty kick Victor Gollancz, London, 1998.
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MORYA, E.; RANVAUD, R.; PINHEIRO, W. M. The point of no return in a simulated penalty kick situation. In: International Society of Sport Psychology: Proceedings of the 10th World Congress of Sport Psychology. Ed. A. Papaioannou, M. Goudas & Y. Theodorakis, Thessaloniki: Christodoulidi Publications, p. 75-77, 2001
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NAVARRO, M.; MIYAMOTO, N.; RANVAUD, R. Controle Motor:
Treinamento e estresse.
 XXIII Reunião Anual Federação de Sociedades de Biologia Experimental FeSBE, Águas de Lindóia, São Paulo, 20-23 Agosto, 2008.

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